O sacrifício

As primeiras imagens do último filme de Tarkovsky, O sacrifício, mostram um pai com seu pequeno filho embaixo de uma árvore seca. Ele conta para a criança a estória de um monge que sobe uma colina para regar uma árvore seca para que um dia florecesse.
Alexander é um professor aposentado, intelectual desiludido diante dos avanços da ciência, o progresso técnico, com a perda de espiritualidade frente ao materialismo contemporâneo, o consumismo desenfreado que transformou tudo comercializável:
"(...)O homem sempre se defendeu. De outros homens, da Natureza da qual faz parte. Ele violou constantemente a Natureza. O resultado é uma civilização baseada na força, no poder, no medo e na dependência. Tudo o que o nosso chamado ‘progresso técnico’ nos deu é um tipo de conforto, uma espécie de padrão e instrumentos de violência para mantermos o nosso poder. Somos uns selvagens! Usamos o microscópio com se fosse um bastão. Não. É errado… os selvagens são mais espirituais que nós. De cada vez que fazemos uma descoberta científica, pomo-la logo ao serviço do mal. E quanto ao princípio, alguns homens sábios disseram uma vez que o pecado é desnecessário. Se assim é, então toda a nossa civilização está baseada no pecado do princípio ao fim. Conquistámos uma desarmonia terrível, um desequilíbrio, se quiseres, entre o nosso desenvolvimento material e espiritual. Há algo de errado com a nossa cultura, ou seja, com a nossa civilização.
[…]
Mas meu Deus, que cansado estou desta conversa!
‘Words, words, words!’ Só agora percebo o que Hamlet queria dizer.
Estava simplesmente rodeado de pessoas sem interesse.Também eu.
Mas porque falo assim? Se alguém parasse de falar e fizesse finalmente algo, para variar.
Ou pelo menos, tentasse. "
Diante à ameaça de uma guerra nuclear que prevê em sonho-alucinação (a essa altura, não há referências para distinguir sonho e realidade) , ele, ateu, faz uma oração e uma promessa, por todos os que estão cheios de medo: se ajoelha e faz sua súplica, coloca a própria ordem de sua vida em sacrifício, rompe com sua vida passada: destruirá sua casa, abdicará do filho que tanto ama, "se tudo voltar a ser como era antes ...". Fecha-se em silêncio, não pronunciará mais nenhuma palavra. Emudece. Está indo além de si. É seu sacrifício da vida como ela se encontra, em sua letargia, para que ela própria possa perpertuar-se. Para que possa outra vez florecer. Seu gesto extremo, desesperado, sua ruptura para que a vida possa expandir-se para além, para romper com a manutenção do hábito, para a vida como possibilidade de reinvenção.
O sacrifício é um gesto de repúdio a dessacralização da palavra, à palavra que se torna vazia de significado, que é apenas desespero e medo dos intervalos de silêncio. Tarkovsky se apóia no silêncio. "Aprender a amar a solidão. Ficar mais sozinho consigo mesmo. O individio deve aprender a ser como uma criança, que não signifca estar sozinho. significa não se aborrecer consigo mesmo. O que é um indício muito perigoso, quase uma doença.", pelas palavras do diretor.
O sacrifício é um elogio ao absurdo contra a ordem naturalizada das coisas. Ao gesto de regar uma árvore morta; fazer amor com uma mulher de poderes mágicos; um gesto contra o medo. É antes, elogio à palavra e ao amor: não à palavra antítese do silêncio, que se tornou sinônimo de incomunicabilidade. A palavra que é silêncio. Sua capacidade de tirar as coisas do lugar, como o necessário sacrifício do personagem: emudecer. Ao amor, não ao amor por medo da solidão: ao amor na sua dupla dependência, um amor que é regar uma árvore morta na esperança que ela floreça, um dia, porque "todo presente é um sacrificio.".
No final do filme, o filho está debaixo da mesma árvore, que ainda não floresceu. Repete as palavras do pai: "No princípio era verbo". E faz sua primeira pergunta por palavras: porque, papai?
O pai não está lá para responder.
A música, não à toa, é A Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sabastian Bach. No evangelho de Mateus, quando Cristo, sozinho no Monte das Oliveiras, pergunta ao Pai se o cálice não pode ser afastado dele, o Pai não responde.
Mas a pergunta fica: você regaria uma árvore morta esperando que, um dia, ela floreça?
O sacrifício é, ainda, um elogio à esperança.
Imagens do final do filme.
http://www.youtube.com/watch?v=BP2pzLZnx1o
Obs.: Revisitando o meu próprio blog, vi essa postagem, de 2007, também sobre o sacrifício:
http://acharneca.blogspot.com/2007/04/offret-aka-le-sacrifice-de-andrei.html
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3 Comments:
Adorei, Fê! A ligação com a paixão de segundo Mateus é muito boa.
Ah, falamos muito, e se o silêncio nos entedia é por pensarmos muito pouco!
Beijão!
Este comentário foi removido pelo autor.
Olá, Fernandete! Fazia tempo que não visitava seu blog, e quando o faço, me deparo com esse belíssimo post seu!
Hj mesmo, de manhã, estava lendo um trecho de "Cartas a um Jovem Poeta", de Rainer Maria Rilke, que falava sobre a importância do silêncio e da solidão, em contraponto ao ruído enlouquecedor e esquizofrênico do mundo ao nosso redor.
Ando precisando de um pouco desse silêncio interno, dessa solidão saudável, da qual falam Rilke e Tarkowsky, e que vc tão belamente traduziu nesse texto.
Grande abraço!
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