27.12.13
18.10.13
Estamos no teatro outra vez. Depois de aplausos as luzes
acendem-se e as pessoas se aglutinam em filas para a saída. Mas estou no canto
e se me levanto, vejo você ainda no tablado, enquanto se ocupa dos cabos depois da apresentação. Observo de onde estou
e não ouso movimento. A plateia vai sumindo, para suas casas ou enchendo os
bares. Me aproximo um pouco mais da escada que dá acesso ao palco. É você quem
vejo daqui debaixo, no trabalho dos bastidores. Há um barulho de comentários e
sons esparsos, no entanto, é você quem vejo enquanto técnicos e outros músicos se
preparam para partir. Se nota minha presença, não posso deixar de estar surpresa, embora o olhasse sem disfarce. E o que mais me assalta é ver que
agora continue a terminar o que faz, mas olhe também para mim. Não me oponho. Os canhões se apagam progressivamente, e todos saem como se não existíssimos. Tomada por um impulso vindo de não
sei de onde, como se fossemos familiares, subo as escadas antes de sermos
apresentados e, ao invés de cumprimentos, nos tocamos. Você enlaça a
mão esquerda em minha cintura, como se fossemos dançar, mas ao invés disso a
mantém imóvel e coloca a direita sobre minha face; e não posso deixar de notar
como curva o rosto de um jeito delicado quando abraça e como toca a pele sobre
a minha. Talvez porque perceba meu riso e talvez intua o motivo, a ver com o movimento das suas mãos (pela destreza em como equilibra nós
dois desse jeito), diz baixinho no meu ouvido como a me explicar: “técnica de La mano izquierta
de agustín Barrios”. E rimos agora juntos, comovidos, como se iniciassemos um passo, e nele adejamos
longe, para sempre no teatro agora vazio, como dançarinos ou atores no palco,
afastando-nos cada vez mais longe como numa barca do conto de um escritor, "mas
para sempre aqui fixados, nesse nosso conto discreto, que tem seu fim mas é só
olhá-lo e novo e a aventura recomeça.
7.4.13
Se antes
tinha dúvidas quanto ao tipo de homem, porque, diante da possibilidade de ser muitos,
agora mais me embaraço porque quer ser pássaro. Mas não me sentindo ainda suficientemente
segura para deixá-lo ser o que deseja e
muito atravessada por uma racionalidade que não faz concessões gratuitas,
refreio com a pergunta. Que imensa força e
tenacidade têm os pássaros, que os impelem a percorrerem quilômetros rio
adentro? Olho repetidas vezes, não sem esgar,
o desempenho de saltos entre os fios de instalação elétrica e galhos de
árvores. Presumo: um equívoco supor que o vôo dependa de "força",
como se o périplo se sustentasse às custas de um bater de asas. Ouvi dizer que grandes pássaros
aproveitam as correntes ascensionais para alçarem altas paragens. Se valem das
correntes que se revolvem na atmosfera, e então percorrem vastas distâncias e
marinham a grandes alturas sem as somas de energia que os motores dão às máquinas
mecânicas! Quando declinam, a resistência reversa das asas ao ar desvia a
trajetória e, ao invés de caírem retilíneos, perpendiculares ao solo, deslizam
de esguelha, numa linha obliqua que pode terminar a muitos quilômetros de
distância.
3.3.13
***
São sensações inventadas, provisórias. Meu destino foi entretecer e tramar, como você na sala rearranja as notas que alguma vez escutara em um disco, talvez um domingo antes do almoço em um fim de verão, quando ainda tinha nove anos, numa casa de fazenda. Lembra da estrada de terra batida sobre os pés dos meninos atrás de uma caminhoneta e você perseguindo passarinhos que vão (dar) por sobre os canaviais. um gesto temerário te impulsiona, a descoberta de que se equilibra com certa desenvoltura: a captação de uma regularidade no voo que coincide com o intervalo de toque do teu calcanhar. Avalia a distância e uma possibilidade razoável de alcançá-los te assalta, você se apressa: é veloz. Você os observa mais uma vez, olha para o alto, precisa ir além. Calcula que é pouco o que os separa, escuta o golpear das asas. Não refrear o ritmo, preparar-se para o salto. Uma palavra irrompe o silêncio, de um impulso? Um assovio? “Acho bonito o som simultâneo ao que vejo”. Um choro, um solfejo? Estar todo sem pavimentos, esse esconderijo, algo no adejar que te distrai, a firmeza se desfaz. Um declive, teus pés afundando na terra inundada e os pássaros indo mais soltos que antes. Tudo se fragmenta. E a revoada se esgarça, desfazendo a trajetória retilínia.
Escuto no meu quarto na noite escura do domingo uma música de alguém que vai chegar: um passo fraco sustenta o que se atrasa. Causa um barulho: imagino ser um salve que se revolve nas folhas, vou atrás. É o telefone que toca. Passa das onze. Uma reminiscência de algo que escutei quando criança, alguma estória. Talvez o som da água vinda do córrego, em uma fazenda, o estalo das raízes mergulhadas no solo, em águas estagnadas a espelhar um verde, onde os pássaros ficavam de pé nos baixios. O pássaro se esconde no buraco do telhado que protege a janela do meu quarto. Vejo teus pés na água cinzenta e o olhar ainda assustado. É você, muito quieto e concentrado na perda dos pássaros ou numa sequência inacabada porque veio me encontrar. Você não lembra à toa do passarinho que ficou no baixio mas logo partiu: Você me viu? Notou minha presença? Não há alteração no teu gesto. É você que quer reconstituir um arranjo, um olhar que ficou perdido, você sustenta a corda em uma das mãos. É Santa Tereza, Santa Maria, um lugar de Minas não mais possível de localizar no mapa, uma cidade que amava. Vou atrás de você, vou atrás de uma cidade inventada para estar ao seu alcance, ou além do seu alcance, pra estar no seu horizonte de olhar. Vi a curvatura do teu dorso, o que me movimenta em tua direção?
O que assalta meu coração e me faz prolongar o périplo? A distender a frase, dispor palavra a palavra. Várzeas e dias de verão no campo, árvores onde estivemos sentados. E continuo dizendo, adejo, há mais a ser vivido e pensado.
21.9.12
Marco um afastamento: algo como uma delimitação territorial. Resisto
rumos em ramos como o exagero dos plurais. No entanto, se me
pergunto porque prescindir de equidade, uma suspeita de que não escapo nunca me
força certa estratégia, que empreste precisão para que eu respire
pedra, muda, sem ser: para que eu o seja.
Escrevo resisto a um certo corpo que se escreve: da melodia à medula, o
hábito censurar a óbvia ossatura. Da modulação de “abstrata palavra”, de um
vocábulo projetado a partir de um fêmur, a composição de anatomia oblonga e semântica distorcida. É que me desconserto? Ou me desconcentro? É tanta anti-matéria
que se apossa de mim!
Teu riso irrompe a superfície intervalar. Que alívio medrar meadas, salto no mar
aéreo de palavras: sorver a frase, suspirar ao fim de estrofes! Toco a rima, pronuncio cada sí-la-ba. Eu o conservo,
no teu-meu invólucro, enquanto vou ficando mais corpórea.
A que se deu esse revés? que o verso trocado em nervo a nada serve! Por nossas filiações seguimos, não servos um do outro. Mas talvez, à tua negligência, fizemos uma fundação discreta e se escoará, em algum lugar, onde alguém aciona teclas de cordas percutidas por martelos de feltro. Isso provoca atrito com o ar. Partículas ondulam umas sobre as outras e, encontrando o obstáculo, voltam reverberando ao redor! Resistirei ao gesto suspenso na órbita? meus olhos.
Tendo lembrado que fui corpo uma vez, recomporia-o só pra ver como a palavra vibra quando sonora. Talvez ser pedra, densa e sólida, que absorveria todo o som, nada se dispersaria! Acusariam-me déspota de pretensões artísticas? Uma farsa?
Mas eis que herdo não um aprendizado, são amontoados de esquecimentos. Antes fossemos atores, represento textos cômicos, ora trágicos. E não sendo, por nossas filiações, seguimos, membros da confraria do palco, mas pelo ofício ainda mais dispersos. E, percebendo-me quase entregue ao choro de quem em vez de ganhar perde, quando fico mais propensa a todas mistificações, sabendo que nunca mais poderia encará-lo do mesmo modo, impostarei minha voz, num canto em tom discordante e de esgar, mas com palavras que sejam corpo, fogo e luz.
3.7.12
Há poucos sons tão bonitos como o de músicos improvisando, quando o que os têm é o despreparo. Quase como uma orquestra quando afina... Ouvi dizer que o oboé dá o lá para o spalla, e essa primeira nota engatilha todas as outras. Do desarranjo até o arroubo harmônico, quartas e quintas justam-se numa amálgama de tantas outras notas, e os instrumentos afinam-se no interstício: um concerto a parte antes do planejado para o palco. Ouvi dizer também que, quando a orquestra afina em público, os instrumentos já estão prontos muito antes de entrarem, eles apenas conferem as notas e encenam a afinação improvisada à platéia comportada.
Mas música que toca não é ensaio de orquestra.
Uma voz dá a nota, poderia ser vinda da tecla de um piano, não importa. Um sincero acaso diz o tom e o colhe atento o instrumentista; e dá deixa pro compositor. O tocador de corda, dedos à espreita, a esse toque vê que se afina e arrisca um som mesmo em desalinho, como quem à toa cede o riso.
E faz desse improviso a música que estende à coda, e toca tão bem que não há nenhum mal nisso: sua e soa por cem, destoa e realinha, deita“ e “rola”, “pinta e borda”, deslinda em ré por querer, põe as mãos pelos pés, adivinha só pra depois esquecer. O silêncio sendo seu ritmo, voz e dom, faz o que bem quer do som! Como bom tocador privilegia não a que almeja, mas a nota precisa, ao seu alcance, que tem seu toque. Sabe que “tocar bem é sempre muito bom”.
E se numa frase sibilina prolonga o risco dessa dissonância, envolve-a em uma mecânica secular, ininteligível para os não violonistas; e com ela atravessa gruas afora, sem ter pressa, já às avessas, até uma outra e inesperada composição, irresistivelmente ainda mais sedutora; e nossa.
Ofício do artista, faz sua matéria-prima tal qual um escritor. Sua estratégia, não sei bem como ou com que pretexto, é durar no texto, como se tudo o fosse, exatamente como quisera, não como se houvesse, não como seria!
Como músico no palco fingindo seu inédito ábsono; embora saiba a pouca razoabilidade, faz em si um dó pontuado. Seu jeito de estendê-lo é também abandoná-lo, o mundo não cabe no alinhavo do som, da palavra. E tudo fica ao contrário. Como rascunho do letrista fica nas entrelinhas, passar à mão implica despedida. E ainda espera, desatino, que o lesse, decifrasse...
O que esse desarranjo me diz com isso é que tudo pode ser reinventado: nada me parece mais bonito que isso no mundo!