Era vontade
de partir: irrompera como um acesso e se intensificara, mas nada além
disso; sua austeridade não permite que eu capte uma evidência de ansiedade, das horas de trabalho e que ainda não encontraram repouso. E ele via, na primeira e segunda madrugada, enquanto próximo a minha janela, vapores,
uma região úmida que constipava as narinas e perturbava a emergir de uma
profusão de sons, com a precisão de um acorde. A cor de ontem, e foi embora sem que eu tivesse aprendido como és. Por uma falta de resistência que não te intrigava, partindo
de um principio fundamento em que as tensões devem ser acentuadas, enquanto
repousos não... foi embora.
Ficou uma
suspeita e uma espera: que tão excessivamente ocupado com as tarefas que o mundo
te propunha, sobrecarregado pelo dever de produção e avesso à distração,
quisesse, por algum descuido, que a saudade de casa fosse a suspeição de uma
falta, que, por acaso, pudesse ser associada àquela última madrugada.
O que havia
nesse país, para onde ia, ou o que o impelia: talvez a necessidade de uma pausa,
ou continuidade para o que uma vez foi pausa e transgressão. Algum deslocamento
imperceptível para os conhecidos, um movimento contrário ao refrear que causa
os graus a menos nesse outro hemisfério. Talvez insatisfeito com o parecer de
que o mundo possa ser aproveitado sem que fosse necessário se afastar muito de
sua casa; ou esse não ter casa: a busca de volta das possibilidades de fala. Desde os trinta anos, tendo ainda pouco mais que
isso, um certo medo de ir, antes de ter-se dado por inteiro, não devia mais ser
considerado mera extravagância, para quem sabe a sua existência exterior vir a
ser limitada quase que exclusivamente. O sonho com o encontro de uma cidade que
elegera como sua, uma casa para o instrumento.
Quando não menciono nenhum nome é que preciso me aproximar de algo que comungue com essa desfaçatez que
temos de querer desaparecer nome e existir o trabalho (ou o seu resultado) de
que não sejamos vistos como somos, em toda sua precariedade, de tudo que
padecemos, um corpo ali, com todo seu aparato e tamanha a fragilidade. Que
alguém nos amasse pela escrita, e saber que nunca se vai ser amado pela
escrita. Tantos anos e essa insuficiência, uma percepção de fracasso
inconsolável, de que nunca está firmemente sólido, mas trânsito e provisório.
Você, que
tem os gestos discretos mas respira severidade, preso no teu quarto de estudos
para improvisar sobre si mesmo; que vai embora da sua casa temporária, que vai
partir para um país de excelências, em que florestas retangulares de enormes
macieiras na sua maior metrópole são parques centrais, um lugar onde as pessoas
só são vistas uma vez, disse João Gilberto, ou Sérgio? Aquele de quem você
falara e que eu te falara. Ou alguém inventado intermédio entre eles? Ele que
vai voltar para casa mas partirá para São Paulo: que tirou conclusões
inalteráveis sobre o que deve ser conhecido; você que diz sim e que diz não,
com severidade e paixão pelo ordenado, mas ainda mais pelo disperso que
ainda não sabe, interrompe a linearidade dos meus afazeres com chegada tão
tarde e desajeitada.
Mas o teu riso rompe; sua indiferença rompe, também sua
beleza quando está disperso no sono. Quando não me diz sim nem não porque não
volta atrás, mas que não me procurará mais. Quando não
tenho domínio, detestarei os lugares que deseja ir porque não estarei lá.
Preciso estar mais atenta, e sempre estar atenta, em busca de algum fio condutor
para entretecer narrativas. Se visse que esse todo estar atento ao trabalho impede o entusiasmo, como se não prestássemos
atenção para a obviedade; longe de qualquer elogio muito apaixonado que não
confere credibilidade nenhuma, então nos afastamos.
Quando digo,
se digo, vem de um desejo uma comunicação para mostrar que me afeto com a sua
presença: é uma percepção de qualquer familiaridade, alguma identificação com o que me constitui mas que não posso ainda
precisar, isso me emociona. Há algo em você que também compartilho: e tendo
filiações tão distintas, poderia haver alguma correspondência?