5.4.11

Era esse intervalo quase manhã e quase fim de noite. Daqui a pouco o barulho de meninos que se banham, mães que gritam desesperadas a procura de seus filhos, ambulantes... . Conquanto, há sons de nada, apenas rumores de água numa oscilação que até um pouco arrufa, ida e vinda repetida das ondas. O sol ainda escondido do outro lado, a textura de um rochedo ainda lívido, a viração sem obstáculo. O sol agora se estendia como tecido raro por sobre o mar, baixinho, como um sopro vagaroso iluminava os faróis, o cais, meus pés.

Encontrei você. Foi a primeira vez que vi esse rosto, prêambulo em frêmito, nascendo difuso e espesso nas minhas retinas. Não era sonoridade sibilina, quase inaudível; contratempo rubato tessitura dura de música. Não compreendi a ortografia das suas palavras, por sua fluência, sua pulsividade. Mas por alguns instantes a matéria lânguida se entende. Falamos a sós. Cedi o riso, deliciei-me contigo. Eu, que não fora monolítica, antes que eu acordasse, encontrei-me não em pedaços, mas preguiçosamente dissolvida, escorregadia, adoravelmente irresponsável.

O sol a pino a tudo iluminava. Preenchia todos os espaços-tempo, incrustava mesmo as quilhas dos navios. Madureza temporã, as castanheiras tinham sons de pássaros, o colorido penetrava até mesmo a matéria das brisas, havia muita cor no dia! O sol na crista das ondas construía efêmeros arcos-íris: feitos e refeitos continuamente, oscilavam venezianas, outras amarelo-ouro. As folhas das trepadeiras sempre sendo outras, e o ar azul-cinza, o sol desabava e aos poucos transmutava a temperatura da água.

Você veio de repente, pôs tudo em confronto, ficou tudo em calhau e ruína. Com a tua presença, as telhas desta casa não são mais as mesmas, este sapato não é mais um calçado. É por isso que me torno um outro, desnecessário conselho, não posso reconhecer-me no espelho, nem com o tatear das minhas mãos, para quê estes dedos? Estes trajes não têm mais serventia, meu corpo não encontra mais postura, toda a residência é inconclusa oscila feito o mar, feito o amor.

Você fez disso um hábito, me recolher entre escombros, entre passados. Sou recolhida pelo teu toque, pelo teu afeto. Tua boca oscila entre um hálito salgado e de fumo, como labaredas. Chegou palavra e som e silêncio, hábil com as mãos. Do outro lado da porta, meu corpo se quis espírito, se quis matéria, sôfrego e descomedido, se quis residência para teus gestos.

Então aproximas, pele, retina, lábios, teu corpo e teu alento, desfalecem-se as palavras, todo langor vai embora. Se o silêncio fora seu ritmo, todo o mais fosse movimento. Sinto sua força, torno-me desordenada e impulsiva. Quando vens, licencioso, livre! te sorvo aos poucos o sorriso que me permite, sumo da lascívia. Fico sonora, múltipla, e sobre nós se descortina a vida, a dança sempre urgente da vida, que para ser vida se derrama em morte. Somos invadidos pelo encanto do desejo, abraçados, ébrios, bêbados, e entregamo-nos precipitados ao chamado dos corpos. Nesse enlace, nos adejamos longe, unidos por uma torrente de êxtase e alívio. Nossos corpos se comunicam. O meu, corrente de jovialidade, sussurra “pressiona-me, comprima-me!”

Submersa nessa atopia, a articulação dos sons da fala se atrofia, a voz tropeça, gagueja, perece. Entrecortada, não posso uma frase! Estou fascinada, embriagada de deslumbramento, como se fosse para sempre! para sempre! como se tudo o fosse, exatamente como quiséramos, não como se houvesse, não como seria, não como existe!

Quando da felicidade, ardil torpor, inútil qualquer palavra. 

As ondas aproximam-se como tropas de cavalaria, como se reivindicassem o espaço que lhes fora tomado: estabelecessem então um campo de batalha. O sol pela perpendicular observava o espetáculo, nenhum som de passarinho, de nenhum bicho. As águas rebentam na praia como relinchar de cavalos, o barulho soa como chicotear de algozes, toma o território pelos flancos, talvez por fim até o asfalto.

Estou em desassossego. Sofro, não consigo distinguir o motivo. Um silêncio absurdo toma a casa nessa manhã e uma chuva todo os espaços de fora. Sofro de um aniquilamento que me tortura o corpo, respiro desconsolada. Onde você está quando não comigo? A espera tem tortuosas gruas... quando você voltar, poderei respirar aliviada outra vez.


As sombras se alongavam na praia, dos edifícios, os traços de suas geometrias tornavam-se mais profundos. As ondas quebrantavam a areia, desmoronando a sólida arquitetura, perfazendo buracos, labirinto retilíneo, tênue curvatura. As pedras perderam toda a sua dureza.
O sol não encontra mais pouso no chão, escondia-se inibido por trás dos prédios. Do outro lado, longe e à minha frente, navios esperam o apitar do porto e barcos atracados no cais esperam quem os devolvam ao mar. Invejo a precisão do horizonte no limiar dos meus olhos. Apenas na distância se faz.

Era o sol se pôr. E a vinda da noite em celestes amavios. Nada ponderava, toda resistência é amavelmente violável. Mas esta noite e a essa hora, as águas e as nuvens se adensam, como se alguém as perturbassem; nessa hora, o oceano é um castelo de sombras.

Estamos prestes a nos separar. Sou tomada pela inquietude, pela angústia da iminente ausência, a iminência da partida. Te escreverei às vezes para te retomar e me deixará sem resposta, na colheita de dúvidas. Então, como se te perdesse, apagarei quaisquer vestígios meus, trocarei meu endereço, sairei da casa dos meus pais, para que possa perdoar sua negligência caso me solicite outra vez. Te afastarás de mim, ignorante do que me foi, talvez até aborrecido de mim. Mas de alguma maneira, trespassarei entre os traunsentes, ciente da minha liberdade, da minha coruscante, embora fugaz, mas ainda sim, inefável solidez (foi você quem me fez assim). No entanto, não durará mais que um instante. Recolherei-me para trás das cortinas e disfarçarei meu luto. Nessa dolente despedida, não há mais lugar para mim. Estou no abismo.

Fico sentada na areia, mergulhada num barulho de tempestade que insiste do outro lado do oceano, onde talvez você esteja; há uma umidade desconfortável na noite e a maresia da praia emudece meu corpo. Calculo as horas que faltam para que a chuva alcance esse território. Em curta dilação, as nuvens se formam esparsas e indissolutas. Fico insalubre e sufocante, respiro soluços, tenho impulsos de chorar. E então sinto minha fraqueza, meus olhos encher-se-ão de lágrimas de saudades. Se pudéssemos ter alguma permanência. Mas tudo transmuda.

Deitarei meu corpo sobre o chão pra ver então a marcha das nuvens que se erguem feito torres, apartadas; que sei, fogem para qualquer lugar que você esteja, vão encontrar você. Então, nessa despedida, caio ainda mais, toda solidez me dada se desfaz num toque.
Enquanto a noite oscila suas pálpebras e as ondas desabam na praia, sonharei a vinda da manhã numa torrencial chuva oblíqua. Mas enquanto isso não posso dormir, porquanto da ressaca, as ondas quando recuam depois da rebentação deixam-me em completo desamparo. Através de uma fresta a luz perolada de um quarto de lua escapa e acorda a madrugada, acorda o mar, acorda a mim. Não me deixará sossegada com suas ininterruptas falhas, seu poder e naturalidade. Inevitavelmente me trará você. Mas sempre intermédio, vou ao encontro do incompassível tempo do recuo, não mais. Em que terras, quais continentes, pressiona com os pés o mundo, sempre outono, e que resulta sempre nesse quebrantar gesto de ondas?
e porque esse terrível receio, esse insustentável desejo de lançar-me ao mar?