3.3.13




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São sensações inventadas, provisórias. Meu destino foi entretecer e tramar, como você na sala rearranja as notas que alguma vez escutara em um disco, talvez um domingo antes do almoço em um fim de verão, quando ainda tinha nove anos, numa casa de fazenda. Lembra da estrada de terra batida sobre os pés dos meninos atrás de uma caminhoneta e você perseguindo passarinhos que vão (dar) por sobre os canaviais. um gesto temerário te impulsiona, a descoberta de que se equilibra com certa desenvoltura: a captação de uma regularidade no voo que coincide com o intervalo de toque do teu calcanhar. Avalia a distância e uma possibilidade razoável de alcançá-los te assalta, você se apressa: é veloz. Você os observa mais uma vez, olha para o alto, precisa ir além. Calcula que é pouco o que os separa, escuta o golpear das asas. Não refrear o ritmo, preparar-se para o salto. Uma palavra irrompe o silêncio, de um impulso? Um assovio? “Acho bonito o som simultâneo ao que vejo”. Um choro, um solfejo? Estar todo sem pavimentos, esse esconderijo, algo no adejar que te distrai, a firmeza se desfaz. Um declive, teus pés afundando na terra inundada e os pássaros indo mais soltos que antes. Tudo se fragmenta. E a revoada se esgarça, desfazendo a trajetória retilínia. 



Escuto no meu quarto na noite escura do domingo uma música de alguém que vai chegar: um passo fraco sustenta o que se atrasa. Causa um barulho: imagino ser um salve que se revolve nas folhas, vou atrás. É o telefone que toca. Passa das onze. Uma reminiscência de algo que escutei quando criança, alguma estória. Talvez o som da água vinda do córrego, em uma fazenda, o estalo das raízes mergulhadas no solo, em águas estagnadas a espelhar um verde, onde os pássaros ficavam de pé nos baixios. O pássaro se esconde no buraco do telhado que protege a janela do meu quarto. Vejo teus pés na água cinzenta e o olhar ainda assustado. É você, muito quieto e concentrado na perda dos pássaros ou  numa sequência inacabada porque veio me encontrar. Você não lembra à toa do passarinho que ficou no baixio mas logo partiu: Você me viu? Notou minha presença?  Não há alteração no teu gesto. É você que quer reconstituir um arranjo, um olhar que ficou perdido, você sustenta a corda em uma das mãos. É Santa Tereza, Santa Maria, um lugar de Minas não mais possível de localizar no mapa, uma cidade que amava. Vou atrás de você, vou atrás de uma cidade inventada para estar ao seu alcance, ou além do seu alcance, pra estar no seu horizonte de olhar. Vi a curvatura do teu dorso, o que me movimenta em tua direção?



O que assalta meu coração e me faz prolongar o périplo? A distender a frase, dispor palavra a palavra. Várzeas e dias de verão no campo, árvores onde estivemos sentados. E continuo dizendo, adejo, há mais a ser vivido e pensado.