3.7.12


Há poucos sons tão bonitos como o de músicos improvisando, quando o que os têm é o despreparo. Quase como uma orquestra quando afina... Ouvi dizer que o oboé dá o lá para o spalla, e essa primeira nota engatilha todas as outras. Do desarranjo até o arroubo harmônico, quartas e quintas justam-se numa amálgama de tantas outras notas, e os instrumentos afinam-se no interstício: um concerto a parte antes do planejado para o palco. Ouvi dizer também que, quando a orquestra afina em público, os instrumentos já estão prontos muito antes de entrarem, eles apenas conferem as notas e encenam a afinação improvisada à platéia comportada.

Mas música que toca não é ensaio de orquestra.

Uma voz dá a nota, poderia ser vinda da tecla de um piano, não importa. Um sincero acaso diz o tom e o colhe atento o instrumentista; e dá deixa pro compositor. O tocador de corda, dedos à espreita, a esse toque vê que se afina e arrisca um som mesmo em desalinho, como quem à toa cede o riso.

E faz desse improviso a música que estende à coda, e toca tão bem que não há nenhum mal nisso: sua e soa por cem, destoa e realinha, deita“ e “rola”,  “pinta e borda”, deslinda em ré por querer, põe as mãos pelos pés, adivinha só pra depois esquecer. O silêncio sendo seu ritmo, voz e dom, faz o que bem quer do som! Como bom tocador privilegia não a que almeja, mas a nota precisa, ao seu alcance, que tem seu toque. Sabe que “tocar bem é sempre muito bom”.   

E se numa frase sibilina prolonga o risco dessa dissonância, envolve-a em uma mecânica secular, ininteligível para os não violonistas; e com ela atravessa gruas afora, sem ter pressa, já às avessas, até uma outra e inesperada composição, irresistivelmente ainda mais sedutora; e nossa. 

Ofício do artista, faz sua matéria-prima tal qual um escritor. Sua estratégia, não sei bem como ou com que pretexto, é durar no texto, como se tudo o fosse, exatamente como quisera, não como se houvesse, não como seria!  
Como músico no palco fingindo seu inédito ábsono; embora saiba a pouca razoabilidade, faz em si um dó pontuado. Seu jeito de estendê-lo é também abandoná-lo, o mundo não cabe no alinhavo do som, da palavra. E tudo fica ao contrário. Como rascunho do letrista fica nas entrelinhas, passar à mão implica despedida. E ainda espera, desatino, que o lesse, decifrasse...
O que esse desarranjo me diz com isso é que tudo pode ser reinventado: nada me parece mais bonito que isso no mundo!